quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Depois de 37 anos, o Nipon fechará suas portas neste domingo

Do outro lado da linha, atende uma mulher de voz baixa, distante. A ligação parecia ruim. Mas ela se permitiu falar mais alto. Diante da primeira pergunta, apenas para que ela entendesse o sentido daquela conversa tão fora de hora e da possibilidade de uma entrevista mais tarde, responde: “Não, a história do restaurante não sou eu. São os funcionários, os clientes, que hoje nem são mais clientes. Viraram amigos, a extensão da minha família”. Ela aceitou, então, falar disso às 17h.

E lá, naquele lugar onde uma história foi escrita, àquela hora ainda vazio, a mulher de voz miudinha nos atende. É magra, muito magrinha, os cabelos bem grisalhos e a voz quase inaudível. Ela olha com atenção. Parece mirar o interlocutor. Nos convida para sentar. Pergunta se pode chamar a mãe, que estava lá na cozinha. Chega uma mulher de 83 anos, cabelos pretinhos e um sorriso tão encantador que alguma coisa começou a fazer sentido naquele momento. Era ali mesmo. O endereço estava certo. Michiko Komeno continua sorrindo. É deslumbrante.

Foi naquela 413 Sul, no Restaurante Nipon, que Yoshiko Komeno, de 53 anos, a mulher de voz miúda, que nasceu lá pelas bandas do Pará — depois que os pais enfrentaram 39 dias num navio do Japão pra cá, em 1940 —, escreveu sua melhor história.

E essa história terá seu capítulo final. Na carta que fez aos clientes-amigos-família, ela diz, emocionada: “É certo que não podemos voltar no tempo para iniciar um novo começo. Mas, diz o sábio, é possível, no presente, reescrevermos um novo final”. E, antes de terminar a carta-despedida, ela antevê: “Mas uma coisa é certa: qualquer que seja o final, ela (a história) será rica em emoções, alegria, amizades e saudades”.

É isso. É um adeus. E todo adeus vem carregado de sentimento. Pode doer, pode rachar. Pode destruir. Mas pode ser libertador. E fazer renascer. Aviso de novos tempos. “No meu caso, ainda bem que o término não foi litigioso, pelo contrário. Será cheio de saudade, com a sensação de ter feito o melhor, missão cumprida”, diz Yoshiko, pela primeira vez se permitindo uma pontinha de sorriso.

Depois de 37 anos, o Nipon, o primeiro restaurante japonês de Brasília, fechará suas portas. Yoshiko, que nunca se casou, define bem a relação que teve com aquele lugar de balcão de fórmica vermelha e cortina feita da sementes de conta de lágrimas: “Ele foi o meu marido”.

E foi esse marido que Yoshiko dividiu com a cidade que a acolheu aos três anos de idade, quando seus pais, japoneses sem falar nada de português, deixaram o Pará para se tornarem trabalhadores rurais nos arredores da terra de JK. Yoshiko ainda nem falava direito. Muito menos a língua de Camões.

Inauguração
A vida seguiu. Yoshiko virou menina-moça. Luziânia tornou-se sua cidade. A nissei virara goiana. Em dezembro de 1973, a irmã mais velha de Yoshiko, Miyoshi Kagoiki, e o marido, Mário Kagoiki, abriram o primeiro restaurante de culinária portuguesa em Brasília. Escolheram a 413 Sul. A capital ainda era adolescente. Ideia simples, cardápio sem invencionices, mas que se adaptasse ao gosto brasileiro.

Yoshiko, durante quase 40 anos, manteve a tradição japonesa, sem traços de ocidentalização - ()
Yoshiko, durante quase 40 anos, manteve a tradição japonesa, sem traços de ocidentalização
A população, em princípio, sem muito costume com yakitori, hamuraki, tepanyaki, sukiyari, sushi e sashimi, foi chegando de mansinho. E, de mansinho, foi gostando. Gostou tanto, que o lugar ficou pequeno. O Nipon se tornou ponto de encontro dos amantes da comida japonesa e de quem ali se iniciou. Mais que isso. Virou referência, lugar de reunião de família e dos amigos.

Yoshiko contava 16 anos e passou a ajudar no restaurante. Fez de tudo um pouco. E percebeu, desde muito novinha, que gente, na verdade, é o melhor tempero de um restaurante. E de qualquer lugar. Em 1976, Yoshiko entra para o curso de economia, na UnB. Nem assim deixou o trabalho no Nipon.

Tempos depois, ela abandonou o curso. “Não tinha nada a ver comigo. Não gostava daqueles cálculos. Devia ter escolhido algum curso da área de humanas”, explica. Seguiu apenas com o Nipon. Apaixonou-se, de vez, pelo cheiro, pelo encantamento do lugar. Doze anos depois, em 1985, o cunhado e a irmã de Yoshiko resolveram abrir outro restaurante, na 403 Sul. “Eles iam vender, mas eu pedi pra ficar. Foi o maior desafio da minha vida”, ela diz.

O Nipon prosseguiu, da mesma forma que foi concebido pelo cunhado. A mesma comida e abrindo apenas para o jantar. Exceto aos domingos, quando oferece almoço. Yoshiko virou a dona. E uma história inteira se avolumou ao longo desses 37 anos. Vieram o pai, o filho, e agora vem o filho do filho.

Namoros começaram ali. Pedidos de casamento. Planos de filhos nasceram ali. “O restaurante não é chique, mas cuida da família, faz com amor”, diz a sorridente Michiko Komeno, mãe de Yoshiko, num português ainda tímido, mesmo depois de 60 anos de Brasil. E pergunta ao interlocutor: “Você já comeu? Não gosta? Tem que experimentar, non!”. Michiko é seu sorriso são demais...


Há três meses, Yoshiko tomou uma decisão que surpreendeu a família, os funcionários e, principalmente, os clientes, que experimentaram a sensação da orfandade. Domingo próximo, 15, será o último dia em que o Nipon abrirá as portas. Mas, como se fecha um restaurante que sempre está cheio, manteve a qualidade da comida, não passa por dificuldades financeiras e tornou-se tradição na capital?

No fim da tarde de terça-feira, Yoshiko recebeu o Correio para uma entrevista exclusiva. Timidamente, ela conta por que fechará o Nipon: “Vou fechar porque estou cansada. Quero ficar mais em Luziânia, onde moro. Meu pai morreu há 12 anos. Minha mãe não pode ficar sozinha lá e vir pra cá hoje é mais complicado pra ela”.

Quando decidiu que iria fechar o Nipon, Yoshiko escreveu uma carta explicando os motivos que a levaram a tal decisão. E pediu que seus amigos escrevessem, se quisessem, alguma mensagem. Os dois cadernos de capa laranja estão lotados. Ricardo Montalvão escreveu: “Se me perguntarem qual restaurante tem a ver com minha história e com minha vida, a resposta é Nipon. Frequento desde os meus 16 anos. Como a melhor comida japonesa no mais mágico dos restaurantes há mais ou menos 30 anos”.

O menino Gabriel sapecou: “Pra mim, o sukiaki daqui deve ser a próxima maravilha do mundo”. A irmã dele, Luzia, uma menina de letra bordada, deixou escrito: “Aqui, eu fiz amizade com os garçons e descobri que Brasília tem um pedaço do Japão no Brasil”. Emocionada, Yoshiko se espanta: “Não sabia que o Nipon representava tanta coisa na vida das pessoas”.

Grande família
Os funcionários de toda a vida chegam para mais uma noite. Passava das 18h. Logo a casa abriria as portas. A mineira Ilma de Jesus Mendes, 58 anos, trabalha há 31 no lugar. “Se eu for contar pra você esse tempo todo, essa história não tem fim”. E lembra: “Vim pra lavar pratos e ficar três meses. Tô há 31 anos. Aprendi fazendo”.

O brasiliense Lindomar Pereira chegou ali com 19 anos. Tem 44 de vida. “Não sabia nada de cozinha japonesa. Olhei três dias e no quarto encarei sozinho. Cada dia é um aprendizado”.

Passa das 19h. Os amigos-clientes começam a chegar. Logo as 19 mesas estão todas tomadas. E o espaço é aconchegante. A luz, nem muita nem pouca. A música instrumental japonesa, ainda em fita cassete, toca num aparelho de som colocado em cima do balcão de fórmica vermelha. Yoshiko não para. Abraça mais um que acaba de chegar. Corre na cozinha pra conferir um detalhe, sobe, desce. E pensa que viveu ali por 37 anos.

Há duas décadas, o publicitário José Noguchi, 59 anos, e a mulher, a contadora Ilvânia Tavares, 52, frequentam a casa de Yoshiko. Ali, fizeram uma rede de amigos. E sabem exatamente o segredo do sucesso do Nipon: “Ele resistiu porque não ocidentalizou a comida, como fizeram os outros”. Ilvânia emenda: “Não tem em nenhum outro lugar aqui em Brasília”.

Yoshiko ouve e se emociona. Ilma, a sempre cozinheira, chora. Domingo se aproxima. O último dia. Yoshiko conta uma novidade: abrirá outro Nipon, em Luziânia, ainda este ano. “Será a mesma comida, os mesmos móveis, a mesma decoração e os mesmos funcionários. Penso em abrir de quinta a domingo”. Seus amigos-clientes ficarão menos órfãos. “Alguns já me disseram que vão atrás de mim”, conta, baixinho.

Hora da foto de família. O fotógrafo pede que se faça na porta. Juntam-se mãe, sobrinhos (Yoshiko não teve filhos), o marido da sobrinha e a filha da sobrinha, uma coisinha linda, com cara de anjo — a quarta geração Komeno. Com a voz quase sumindo, Yoshiko pergunta: “Eu posso chamar a Ilma (cozinheira)? Ela também é minha família”. E lá se foi Ilma, carregando Anna Sayuri, o anjinho de olho puxado e nove meses de vida.

Naquele instante, a mulher que fez de um restaurante a história dela e de uma cidade se deixou revelar por inteira. Ela nem precisa mais sorrir na foto. Seu Nipon só deu certo porque Yoshiko, antes de sua comida impecável, fez de gente seu cartão de visita.

Minha visão
Este lugar foi um canto especial em minha vida...que jamais vou esquecer...fica a sensação de ficar sem rumo nesta cidade onde portas se abrem e fecham todos os dias...A missão deles foi mais que cumprida, ali comemorei aniversários..pedi em casamento a Agatha, e lá foi o nosso ultimo jantar juntos. Fica a saudade não só da comida mas da casa e das pessoas.Juro que vou a Luziania para viver esta nova era.

fonte: Correio Brazileinse